Quando a Filosofia Devora a Inteligência Artificial
- Bruno Vide
- 29 de mai.
- 3 min de leitura
O que acontece quando uma máquina pensa sem saber porquê?
Não se trata de um paradoxo futurista, mas de uma urgência presente. É essa a inquietação que Michael Schrage e David Kiron trazem no provocador artigo "Philosophy Eats AI". Se o software devorou o mundo e a IA engoliu o software, agora é a vez da filosofia entrar em cena, não como ornamento, mas como fundação.
A ideia central do artigo é disruptiva: a filosofia está a devorar a IA porque esta última, ao atingir níveis de autonomia e influência crescentes, já não pode evitar responder a questões filosóficas profundas. A inteligência artificial, dizem os autores, não é apenas uma construção técnica, é uma construção epistemológica, ontológica e teleológica. Está inevitavelmente implicada em decisões sobre o que é verdadeiro, o que é real e o que deve ser feito.
Os três domínios filosóficos fundamentais
Schrage e Kiron identificam três áreas onde a filosofia se infiltra — ou deveria infiltrar-se — nas fundações da IA:
Teleologia (Propósito): Qual é o fim último de um sistema de IA? Para que serve, quem beneficia e o que está a tentar alcançar? Estas perguntas não podem ser respondidas apenas com código.
Epistemologia (Conhecimento): O que conta como conhecimento para uma IA? Como valida o que "sabe"? E que fontes ou estruturas de confiança orientam essa validação?
Ontologia (Representação da Realidade): Como representa o mundo? Que categorias constrói? Como distingue o que existe do que é ruído?
Estas três dimensões não são teóricas no mau sentido, são estruturais. São os alicerces sobre os quais assentam as decisões, inferências e interações da IA.
Implicações práticas
O artigo exemplifica este ponto com um caso concreto: os erros cometidos por sistemas de geração de imagem como o Google Gemini, que falharam ao tentar representar a diversidade humana. O problema aqui não foi apenas técnico, foi filosófico. A confusão entre representação histórica e justiça contemporânea revelou um vazio ontológico e uma falta de reflexão teleológica: qual era o propósito da imagem? Representar fielmente? Corrigir simbolicamente?
A ausência de clareza filosófica conduz a decisões incoerentes, ou até perigosas. O risco, alertam os autores, é criar sistemas "inteligentes" que atuam com base em pressupostos invisíveis, muitas vezes importados de contextos culturais, históricos ou ideológicos errados ou não examinados.
O papel estratégico da filosofia nas organizações
A proposta do artigo não é filosófica no sentido académico. É estratégica. Schrage e Kiron defendem que os líderes empresariais devem incorporar a filosofia no coração da estratégia de IA, não como uma camada de verniz ético, mas como motor de decisão. Isto implica:
Clarificar objetivos com base em valores.
Compreender os modelos de conhecimento que orientam os sistemas.
Escolher estruturas de representação que façam sentido para o negócio e para os públicos envolvidos.
Sem essa clareza, dizem os autores, a IA será uma força errática. Poderosa, mas cega.
Para além da ética
Muitos debates sobre IA ficam-se pela ética, o que é permitido ou proibido. Mas a filosofia vai mais fundo: pergunta porquê, para quê e como sabemos o que sabemos. É aqui que se distingue o uso responsável da IA do uso meramente funcional.
A ética preocupa-se com limites. A filosofia com fundamentos. E sem fundamentos, qualquer limite é arbitrário.
Pensar antes de automatizar
Mais do que nunca, liderar com IA exige mais do que engenheiros e cientistas de dados. Exige pensadores. Exige filosofia. Porque o futuro da inteligência artificial não se decide apenas no silício, mas na semântica.
"Philosophy Eats AI" não é apenas um título provocador, é um aviso estratégico: sem filosofia, a Inteligência Artificial devora-se a si própria.
Fontes:
Michael Schrage & David Kiron, "Philosophy Eats AI", MIT Sloan Management Review, 2024. https://sloanreview.mit.edu/article/philosophy-eats-ai/
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